panorâmicas

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a evolução do homem

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

jornadas

eu fazia plantão em curaça, cidade de poucos mil habitantes, distante 110 km, de juazeiro, na bahia, maior cidade do norte do estado. era um domingo a tarde, ainda faltavam mais de 15 horas pra acabar o meu plantão. tudo fechado. exceto a sorveteria em frente, que na verdade, funciona na janela da sala da residência do sorveteiro. sol ainda quente, silêncio, e gente passeando a pé, quando chega um rapaz com olhos vermelhos, pra consultar. durante a anamnese, perguntei o porquê do olho vermelho e ele relatou que estavam vindo de bicicleta, foram assaltados e aí o olho ficou vermelho. até aqui, nada de especial.

assim que chegou ao hospital, era inevitável não reparar na bicicleta que ele vinha, com uma mulher na garupa com menino pequeno no colo, duas sacolas de plástico em cada braço, e sobre o guidão uma mala e mais uma sacola em cada lado do guidão. "de bicicleta? estavam onde?" e aí começa a parte boa. "mas por que não vieram antes para o médico?" o assalto, foi no sul da bahia, e sem dinheiro, não conseguiram atendimento. "no sul da bahia, desde então, sem comer?" os bandidos levaram só o dinheiro mesmo, deixaram ele com a bicicleta e a família. "o senhor vem trazendo sua esposa e filho, seis sacolas e mala, de bicicleta, sem dinheiro e sem comida desde o sul da bahia?". não, vinham de onde estava morando; havia parado em curaça mas vinham de sorocaba e estavam indo para uma cidade no interior do ceará.

é em horas assim que algumas coisas perdem o sentido, e outras ganham vida. porque em questão de minutos, havia pratos de comida para os três, água, cadeira, atendimento médico especializado em juazeiro, funcionários desmontando a bicicleta para transporte, ambulância disponível e dinheiro suficiente para passagens de ônibus de juazeiro ao destino final.

era domingo. mas isso era o que menos importava. era vida real.

só quando se vive uma situação assim é que a gente tem cer-te-za que o filme, o caminho das nuvens, não é só uma produção cinematográfica.

e essa história me faz lembrar de uma outra, que aconteceu numa fria noite de agosto, quando eu e minha mãe saíamos da nossa aula de italiano. em curitiba, o ato de separar lixo criou uma categoria nova de trabalhador, conhecida como catador de papel, que puxa um carrinho feito de madeira do tamanho de um carro popular, cheio de papelão (os catadores mais privilegiados tem um cavalo para ajudar no transporte, ou um burrico manco). todos seguem a mesma rota, em direção a um bairro onde se compra o papelão a mais ou menos 15 a 20 centavos o kilo. essa rota, passava de frente ao instituto dante alleghieri, no centro da cidade. ao se virar de um balde grande de lixo com todo papelão nos braços, o catador de papel esbarrou num nobre executivo que voltava exausto de seu escritório aquecido findo mais um dia de trabalho. o executivo não teve dúvidas. com o terno abarrotado e a mão cheia de raiva, proferiu um soco certeiro no meio do rosto do catador de papel, que caiu aos nossos pés ensangüentando a camiseta regata. chinelos de plástico gastos no calcanhar, bermudas sujas. em minutos, a multidão, o carro de socorro (na época chamava siate, hoje o nacionalizado samu), o transporte ao hospital, o atendimento e a comoção, principalmente de minha mãe. agachadas, experimentamos algumas palavras com o moço, que balbuciou, "que vontade de voltar pra minha paraíba".

era inverno, era noite. essa era também a vida real.



um catador de papel
(foto do blog olhares)

Um comentário:

Unknown disse...

Querida...
Fiquei duplamente emocionada ao ler os relatos. Os dois fatos vieram nitídamente à minha lembrança.
Essa é a vida real??? Que pena... Como essa vida real dói!
Beijos